Desafio GREAT – Lições de modernização no futebol
Leia abaixo mais um texto de um dos participantes do Desafio GREAT, Guilherme Seto Monteiro:
Dois eventos transcorridos na segunda metade da década de 1980 marcaram um ponto de inflexão na história do futebol britânico. Em 1985, no estádio de Heysel, na Bélgica, jogavam Juventus e Liverpool pela final da Copa Européia, quando “hooligans” torcedores do time inglês forçaram um muro de proteção, que cedeu sobre a torcida “bianconera” – 39 torcedores morreram nesse episódio. Alguns anos adiante, em 1989, durante uma partida entre Liverpool e Nottingham Forest no Hillsborough Stadium, em Sheffield, 96 torcedores morreram – pisoteados, esmagados contra as grades – após a polícia perder o controle da quantidade de pessoas no estádio.
Para além do aspecto dramático, tais acontecimentos também definiram uma mudança de postura que alçaria o futebol britânico à condição atual de mais próspero do mundo – superando as ligas espanhola e italiana. Na década de 1980, o futebol britânico passava por um momento desfavorável sob diversos aspectos: econômico, infraestrutural, organizacional e técnico. Suas receitas eram inferiores às das ligas concorrentes, que prosperavam na crista da onda da globalização; seus estádios estavam sucateados; e seus melhores jogadores saíam do país para jogar em campeonatos de maior destaque.
As tragédias de Heysel e Hillsborough comoveram a opinião pública local e mobilizaram sua classe política, que encontrou em Lorde Taylor de Gosforth seu principal representante no encaminhamento das providências a serem tomadas. Desse esforço político conjunto surgiu o chamado Relatório Taylor, documento que se tornaria a pedra angular do futebol britânico que hoje é conhecido internacionalmente.
Em linhas gerais, as páginas do relatório estabeleciam medidas infraestruturais a serem cumpridas por entidades governamentais e os clubes de futebol, além de discriminar as responsabilidades de todos dali em diante – políticos, dirigentes, torcedores. A partir do relatório, os clubes fizeram obras radicais de modernização de seus estádios, que ganharam uma feição particular: há cadeiras numeradas para todos os torcedores; não há alambrados que separem os torcedores do gramado; não há muros de separação entre setores diversos.
Para além desses aspectos mais visíveis, há também a supervisão do comportamento dos torcedores por meio de um sistema de vigilância, a fiscalização contínua dos estádios por parte dos órgãos públicos, além de campanhas educativas pela civilidade nos estádios. No bojo desse processo de modernização, o Reino Unido construiu um produto com identidade própria: arquibancadas seguras e lotadas, que circundam um gramado esmeraldino como que cortado à régua. O investimento em segurança e qualidade tem dado retorno: segundo estimativas do jornal “The Telegraph”, o futebol inglês logo terá mais receitas provenientes da compra dos direitos de transmissão por emissoras estrangeiras que receitas originárias das redes de televisão locais, e assim caminha para ser a liga de futebol mais assistida no mundo.
O Brasil também teve sua cota de tragédias futebolísticas. Para lembrar somente duas, poderíamos remeter ao Flamengo e Botafogo, em 1992, quando as grades de proteção do Maracanã ruíram e quase uma centena de torcedores se feriu após uma queda de oito metros; ou a Bahia e Villa Nova, em 2007, quando sete torcedores morreram com o desmoronamento da arquibancada do estádio da Fonte Nova, em Salvador. Contudo, a despeito da comoção pública, as classes políticas e os dirigentes esportivos não se mobilizaram como seus correlatos britânicos. Os estádios brasileiros mais modernos são pródigos em apontar o pouco que o país aprendeu com os traumas de seu futebol: alguns já revelam problemas de estrutura; os torcedores encontram dificuldades nas bilheterias e na entrada; os alambrados permanecem, e ainda representam perigo; e os torcedores ainda temem a persistência de uma cultura da violência.
O Reino Unido é conhecido como o nascedouro do futebol; o Brasil carrega a alcunha de “país do futebol”. As primeiras lições britânicas, trazidas por Charles Miller nos últimos anos do século 19 em sua bagagem, junto de duas bolas, um par de chuteiras e uniformes usados, foram aprendidas com maestria pelos brasileiros, que criaram uma outra maneira de praticar o jogo: o “futebol-poesia”, tal como denominava Píer Paolo Pasolini. No entanto, as últimas lições de modernização ainda não foram bem assimiladas em terra brasilis, e enquanto as condições infraestruturais e organizacionais mínimas não forem alcançadas, o futebol nacional continuará um espetáculo de grandes artistas em palcos mambembes, apresentado para plateias mirradas.