Falta estômago?

Paula Leite

Por Rayanne Azevedo, trainee da turma 54

A semana passada foi uma das mais intensas do treinamento. Durante quase todo o período estivemos imersos em um curso introdutório de direito para jornalistas, ministrado por Gustavo Romano.

Durante as aulas teóricas, Romano gostava de ilustrar conceitos do direito penal com exemplos de crimes ou contravenções.

Sempre que o professor mencionava algum caso bizarro, especialmente aqueles que envolviam violência, eu me encolhia na cadeira e, cenho franzido, disparava: “que horror!”.

Isso deve ter se repetido ao menos umas dez vezes, até que Romano se impacientou. Disse à turma que nós, jornalistas, não podíamos ter estômagos fracos. Que eventualmente teríamos de cobrir casos desagradáveis. Se a ideia nos parecesse demasiado inconcebível, que mudássemos de profissão.

Haiti
Haitiano retira carteira de homem morto pela polícia em confronto com saqueadores em Porto Príncipe, cinco dias após terremoto que atingiu o país // Caio Guatelli-17.jan.2010/Folhapress

É assim todo dia. Cobrem-se conflitos armados, violência urbana, desastres naturais e todo o tipo de miséria alheia. Gente que definha à espera de atendimento médico nos hospitais públicos. Que vê o barraco – todo o patrimônio de que dispõe – pegar fogo e virar pó. Ou que perde parentes e amigos por um celular e duas pedras de crack.

E o que seriam das histórias dessas pessoas se não houvesse ninguém para contá-las?

Sim, é preciso que haja gente com estômago forte para levá-las adiante.

Mas – que me desculpe Romano -, a meu ver, isso não quer dizer que para isso eu tenha a obrigação de me transformar em um ser indiferente às mazelas dos outros. São terríveis, sim, e terríveis hão de continuar sendo enquanto conservar alguma réstia de humanidade em mim.

Falar é fácil. Mas e encarar na vida real – e não se horrorizar? Se nos habituamos, não estaríamos naturalizando algo anormal? O normal não é que essas coisas choquem? Por que não chocariam?

Creio que seja imperioso contar histórias, quaisquer que sejam, valendo-se de técnicas objetivas e com profissionalismo. Mas, no dia em que tiver de cobrir alguma desgraça e fizer isso sem antes ter qualquer sensação de estranhamento, saberei que há alguma coisa errada.

Comentários

  1. Você está certíssima. Os melhores jornalistas que conheço são os que se mantêm sensíveis às histórias dos outros. Que se chocam, ficam indignados, se revoltam. Só essa paixão nos leva a correr atrás, por dias a fio, de informações que querem esconder de nós. Ou que nos mantém com a adrenalina a mil, ouvindo uma desgraça atrás da outra, numa cobertura mais aprofundada. Você provavelmente não vai gostar de ter insônia à noite, de não conseguir dormir porque a chuva está aumentando e você tem certeza que ela já está invadindo a casa do pessoal do Jardim Pantanal com quem você conversou o dia inteiro. Acordar suando quando começa a trovejar sem parar, porque nem todos moram num prédio firme como o seu. Mas o pior jornalista é o que construiu um muro de pedra ao seu redor. De qualquer forma, há espaço para ele também. Ele pode ter outros talentos guardados, como trabalhar com tabelas de orçamentos, entrevistar políticos. Nem todos vão cobrir as histórias das cidades a vida inteira… Mas, se é o que você quer, mantenha-se sensível! Sempre.
    bjos

  2. Olá, Rayanne Azevedo! Logo quando abri o post, sem ao menos ler o título ou até mesmo o texto, fiz exatamente o que você descreveu logo abaixo: “encolhia na cadeira e, cenho franzido, disparava: “que horror!””. Dentro de todas essas reações compartilho da mesma opinião. Como não ficar em choque a achar no mínimo triste. No entanto, temos que estar preparados para esses momentos. E não quero esperar pelo dia de cobrir situações sem qualquer sensação de estranhamento. Faz parte da nossa profissão e com certeza é sempre para um bem maior, pelo menos é isso que espero. Sempre fazer uma matéria para um bem maior, para a comunidade, para melhorar a vida das pessoas.

  3. Excelente, Rayanne. Embora seja indispensável a postura objetiva do repórter, este jamais deve ser indifente ao horror. Tão terrível quanto a violência ou a tragédia em si, é o efeito que o contato cotidiano com isso pode causar em nós. É claro que deve haver uma “blindagem” emocional, até para preservarmos a sanidade, o equilíbrio e mesmo nossa capacidade de nos relacionarmos. Mas isso não deve, jamais, excluir nossa humanidade.

    1. Confesso que nunca passei por uma situação extrema, que carecesse da blindagem emocional. É difícil, né? Tem momentos que o noticiário pega a gente de surpresa. Pior é que é tanta coisa ruim acontecendo que as pessoas já nem se chocam mais. Ou se chocam, mas só até virar a página do jornal e se deparar com a desgraça seguinte.

  4. Tenho um professor que conta sua experiência nesse tipo de atividade. “Na hora a gente leva com frieza, não sente, só que mais tarde o emocional cobra a conta”.
    Acredito que seja algo próximo disso, o dever jornalístico se sobrepões a alguns instintos e, mais tarde, depois de cumprido, deixa que eles floresçam novamente no jornalista.

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