“Sentinela da Liberdade” ou “Testemunha da História”?
Por Gastón Salinas, trainee da turma 54
Fazer um jornal diário não é fácil. São muitas as variáveis envolvidas na equação que diariamente opera nas redações, desde a apuração de informações até o fechamento das matérias.
O fator humano somado à “Lei de Murphy” pode dar uma ideia do desafio que é o fechamento de cada edição, onde a imperfeição e a falibilidade espreitam a todos. Isso, entretanto, não isenta o jornalista de responsabilidade por seu trabalho. Para não se perder em meio ao caos é preciso saber dosar valores particulares com o norteamento editorial do jornal.
Recentemente, durante a leitura do livro “Jornalismo Diário”, de Ana Estela de Sousa Pinto, deparei-me com a seguinte citação do jornalista britânico David Randall que, a meu ver, ilustra e resume bem a natureza dos periódicos:
“Este jornal e as centenas de milhares de palavras que contém foram produzidos em aproximadamente 15 horas por um grupo de seres humanos falíveis que, desde redações lotadas, tratam de averiguar o que ocorreu no mundo recorrendo a pessoas que, às vezes são refratárias a contá-lo e, outras vezes, decididamente opostas a fazê-lo. Seu conteúdo está condicionado por uma série de valorações subjetivas realizadas pelos jornalistas e os chefes de redação e influenciado pelo conhecimento que estes têm dos preconceitos do diretor e dos proprietários. Algumas notícias aparecem sem o contexto essencial, já que este reduziria o dramatismo ou a coerência (do texto). Parte da linguagem empregada foi escolhida deliberadamente pelo seu impacto emocional e não por sua precisão”. (“Jornalismo Diário”, p. 56)
A partir da citação podemos nos questionar a respeito dos interesses que os jornais visam atender e satisfazer. São os de seus proprietários? Os de seus leitores? Os dos repórteres? Os de alguma ideologia? Um jornal deve procurar agir como “sentinela da liberdade” ou como uma “testemunha da história”?
Vemos que são muito diferentes e divergentes os predicados que podem ser atribuídos aos periódicos. Como então, conciliar esses interesses, muitas vezes divergentes e antagônicos?
Uma das soluções possíveis é adotar o pluralismo e, complementarmente, o apartidarismo como linha editorial. É o que a Folha faz desde 1984, quando lançou seu Projeto Editorial, posteriormente explicitado no Manual de Redação.
Tal postura pode ser tomada como utópica ou impossível de ser plenamente atingida no cotidiano do jornal. Não será em cada edição que, com proporção exata e matemática, que todas as opiniões e representações partidárias serão precisamente atendidas; mas a longo prazo, a intenção é que o mesmo espaço esteja disponível para a defesa e argumentação dos diferentes antagonismos. A crítica interna à prática diária do próprio jornal também torna-se também necessária para a manutenção dessa linha editorial.
Isso agrega uma postura mais prudente à equação que agita as redações. Somada ao Projeto Editorial e à autocrítica constante, o trabalho diário pode ficar mais difícil e desafiador, mas também ganha um norte e uma base de sustentação que ajuda a manter a credibilidade do jornal.
Gaston,
Grato pelo esclarecimento. Também aprendo com a interação.
O risco é que a falta de foco (público amplo) cria um retalho. Parece que o modelo é bom, pois a circulação (volume de leitores) aumenta. Mas a qualidade cai.
Acompanhar esta evolução é o grande desafio.
Agradeço a atenção em responder a este “leitor-curioso”
Abraços
Disponha 😉
Prezado Gaston,
Sóbria e interessante análise. Sou leitor e não tenho a intenção de ensinar jornalismo a jornalistas. Mas qualquer manual de gestão exige que você defina seu público-médio. Quando falamos do jornal “Extra” fica claro seu público ou quando falamos da revista “piaui” também é percebido seu público.
Minha crítica (nunca respondida) é que a FSP perdeu seu foco em um público. Ao tentar satisfazer todos os públicos, perdeu um pouco a qualidade editorial e a apuração jornalística. O mito da “pluralidade” é um eufemismo para se fugir a questão: qual é meu público? (isso se aplica a QUALQUER atividade humana de comunicação).
Continuo acreditando que este é um tema que deveria ser explorado no seu treinamento.
Prezado Ramiro,
Obrigado pelo seu comentário!
Acredito que a questão da perda de foco em um público não é tão nebulosa assim. No livro que lemos da “História da Imprensa Paulista”, temos na p. 242 uma referência a outro livro, o “Mil dias” de Carlos Eduardo Lins da Silva, em que o público alvo da Folha aparece bem delimitado:
“O pluralismo e o apartidarismo são necessários não porque eles representam uma objetividade eticamente desejável nem porque eles signifiquem que o jornal é capaz de representar o real sem deformações, mas apenas porque o público que consome o jornal é composto por pessoas com diferentes visões de mundo e, como o jornal não pode prescindir de nenhum grupo significativo de seus leitores, deve representar cada um deles no noticiário e não discriminar nenhum. ”
A definição talvez pareça nebulosa porque não estabelece uma polaridade claramente identificável – e é aí que está o desafio.