O suspeito matou? O PYZ é corrupto? Neymar finge?
Continuação do post “Há limites para perguntas?”
Você está cobrindo um crime cujo suspeito tem uma extensa ficha corrida. Todos os indícios são de que ele é culpado. Há algum problema em perguntar ao delegado:
— Quando o senhor vai divulgar o indiciamento desse bandido?
Um repórter com fortes preferências políticas pode questionar assim o presidente do Banco Mundial:
— Vocês tomam mais cuidado para patrocinar projetos de um governo corrupto como o do PYZ?
Ou no exemplo do outro post: antes do jogo, ao entrevistar o árbitro, uma outra colega indaga:
— É mais difícil apitar jogo com Neymar, craque em cavar faltas?
Para mim, as três questões têm dois pontos em comum:
- expressam a convicção do jornalista de que o sujeito da notícia cometeu infrações
- podem fazer com que o peso do jornalismo influencie um entrevistado que tomará decisões sobre o tal sujeito (mesmo que não seja essa a intenção)
Acredito que jornalistas não devem fazer perguntas que exponham uma posição tomada, parcial, sobre o assunto que estão cobrindo.
Mas, na verdade, a questão é anterior: nós não deveríamos nem ter posição tomada, por mais difícil que isso seja.
Se ele o repórter acha que o Neymar é cai-cai, talvez devesse fazer o esforço de olhar o inverso, de ver se ele não é violentamente caçado em campo.
Se for ver, é capaz que, em relação ao número de vezes que é caçado em campo, a porcentagem de vezes que o atacante cai seja bem menor que a de outros craques. (para lembrar, números absolutos quase sempre são informações incompletas. Neste link, um post com dicas de como tratar quantidades em jornalismo e um exercício)
No limite, a gente tem que tentar praticar o que chamei de “zen-budismo” do jornalismo, neste post bem antigo: exercitar-se mentalmente para procurar as falhas de quem parece santo e as qualidades de quem parece monstro.
Conheço repórteres e editores –dentre eles meu leitor mais crítico– que anulam o voto em toda a eleição, antes mesmo de saber quais os candidatos, para evitar que preferências afetem o distanciamento.
Mas meus leitores e meu blogbudsman Takata levantam um ponto muito legal: a pergunta para o árbitro tem razão de ser. É interessante saber como o juiz se sente ao apitar um clássico (Corinthians e Santos, não um clássico qualquer) em que joga o mais talentoso goleador do momento.
Como fazer isso sem parecer tendencioso? A boa sugestão do Takata é: “Alguma atenção especial a ser dada para um ou outro jogador em particular? Indisciplina, cavar faltas, jogo violento?”
Por fim, exercendo toda a minha isenção, tenho a dizer o seguinte: se o Neymar finge eu não sei, mas o Messi, este nunca cai!
🙂
Toda sua isenção, claro, hahaha.
Super concordo!! =)
=D
Vou fazer um parêntese sobre este trecho:
“Conheço repórteres e editores –dentre eles meu leitor mais crítico– que anulam o voto em toda a eleição, antes mesmo de saber quais os candidatos, para evitar que preferências afetem o distanciamento.”
Ah, mas eu arrisco dizer que esse evitamento é apenas simbólico. À medida que o repórter/editor vai conhecendo o candidato e suas ideias, certamente ele vai acabar tendo preferência por um outro (ou, pelo menos, desgostar mais de um do que de outro). Jornalistas são seres humanos. Não dá para aceitar que são seres isentos de qualquer tipo de preferência.
Marcio, concordo inteiramente. Mas é uma questão de atitude mental. Ninguém consegue ser absolutamente imparcial, mas você pode se exercitar para isso. Tentar é melhor do que nada. Ana