‘Entrevista com Elize Matsunaga não foi paga’, diz idealizadora da série
Uma semana após estrear, a série “Elize Matsunaga: Era Uma Vez Um Crime” ainda ocupa a lista dos dez títulos mais vistos da Netflix. A obra conta um dos crimes que mais ganhou espaço na mídia brasileira: a história da paranaense que, em 19 de maio de 2012, assassinou e esquartejou o marido e herdeiro da Yoki, Marcos Matsunaga.
Thaís Nunes, idealizadora da série e uma das repórteres entrevistadas durante o documentário, conta que foram 18 meses de negociação do produtor Gustavo Melo até conseguir uma entrevista com Elize, que nunca falou com a imprensa. Antes de assinar a obra para a gigante do streaming, ela cobriu o caso como repórter, primeiro no Diário de S.Paulo, jornal que não existe mais, e depois no SBT.
Segundo a Netflix, foram 21 horas de entrevista com Elize e mais de 20 entrevistados, entre eles jornalistas, amigos do casal, familiares, advogados e especialistas criminais. A protagonista do caso não recebeu nenhum valor em dinheiro para falar, tampouco os outros convidados, de acordo com Nunes.
“Desde o início, sempre quis ouvir o que Elize tinha a dizer. A vontade ficou ainda maior quando fui a Chopinzinho, interior do Paraná, e conheci o padrasto dela. Senti ali que a história tinha nuances mais profundas do que a mídia tradicional havia explorado”, conta a idealizadora.
Em dezembro de 2016, Roseli de Araújo, tia de Elize, revelou ao júri que a sobrinha tinha sido abusada sexualmente pelo padrasto.
Nunes entrou em contato com a presidiária pelos advogados dela, Luciano Santoro e Juliana Fincatti, e propôs que a história fosse contada de forma “a explorar os sentimentos que a levaram a cometer o crime, sem minimizar o que tinha feito”.
Luciano Santoro diz que Elize não tinha interesse em dar entrevista antes da Boutique Filmes, produtora da obra, contatá-la e a defesa também não achava uma boa ideia.
“A decisão de não dar entrevista para a rede aberta foi tomada no início do caso. Eu nunca vi nenhuma vantagem. Se você compara com outros casos, acho que os réus só se prejudicaram.”
Entretanto, anos depois, Elize teria vontade de gravar sua versão da história para a filha. Além disso, o advogado afirma ter guardado muitos elementos para o júri que não vieram a público, como email e publicações na internet.
“O público, por minha responsabilidade também, sempre teve a notícia de uma parte da história e não a completa”, diz.
Questionado sobre a possibilidade da série ajudar Elize Matsunaga juridicamente, Santoro reitera que não é possível haver redução de pena, porque isso foi decidido pelo júri, mas afirma estar tentando converter o regime de prisão de Elize em aberto. De acordo com a contagem dele, ela já deveria ter esse direito desde março deste ano, mas, até agora, segue em regime fechado.
Matsunaga foi condenada, em 2016, à pena de 19 anos e 11 meses pelo assassinato e esquartejamento do marido.
Thaís Nunes chama a atenção para o gosto da entrevistada pelo pintor italiano Caravaggio –que foi explorado no primeiro dos quatro episódios da produção. A jornalista tinha acabado de voltar de Roma, onde teve a oportunidade de ver as obras do artista e, ao contar da viagem para Elize, conseguiu estabelecer um vínculo com ela. “Falamos sobre arte um tempo e aí deu um nó na cabeça. Trouxemos isso para a entrevista. O documentário aconteceu pela relação de confiança que se estabeleceu entre mim e ela e, depois, entre ela e toda a equipe”, diz a repórter.
Para Nunes, a série é uma possibilidade para aqueles que estão dispostos a contar histórias em profundidade.
“Vimos alguns jornais tradicionais encerrarem suas atividades e a audiência da televisão aberta cair. Eu mesma não tenho o costume de assistir TV. Em contrapartida, sou consumidora voraz de filmes e séries documentais.”
A jornalista contou que está envolvida no desenvolvimento de um longa-metragem e assina uma outra série, ambos no formato documental para serviços de streaming.
Sobre a razão pela qual Elize teria aceitado dar a entrevista, Nunes destaca o desejo que ela tinha de contar a história para a filha, que ainda era bebê quando o assassinato ocorreu.
Dois outros repórteres que participam da obra documental também acreditam ser esse o principal fator que levou a detenta a falar. Lucas Martins, repórter da Band e quem deu o furo [jargão jornalístico para notícia excepcional publicada por um veículo antes dos demais] sobre os pedaços dos corpos encontrados em Caucaia do Alto, distrito do município de Cotia, em São Paulo, diz que o contato da menina com a entrevista feita pela mãe será inevitável.
“Ela vai pra escola, ela tem um mundo fora do ambiente doméstico. Em algum momento ela vai ter acesso a esse material. Não sei te dizer se isso é positivo ou não.”
O jornalista deu entrevista para o documentário sobre o caso Matsunaga em 2019 e diz que algumas pessoas acham que a obra vitimizou a assassina, em virtude das cenas que exploram as agressões verbais feitas pelo esposo, a pressão psicológica e as ameaças de colocá-la num hospício e afastá-la da filha.
“É como se o fato dela ter sido vítima de tudo isso diminuísse o crime que ela cometeu. Neste caso, especificamente, que é muito mais incomum, a vítima foi o homem e não a mulher.”
Para o repórter, só o fato de Matsunaga ser rico e ter sido esquartejado não seria suficiente para cativar o público. “Os grandes casos da crônica policial, aqueles que chamam mais a atenção, têm todos os elementos de um filme ou de uma novela; é isso que atrai a atenção de quem está em casa.”
Paula Scarpin, ex-jornalista da revista piauí, fez uma reportagem sobre a cobertura da imprensa no caso em janeiro de 2017, intitulada “Um Crime Célebre”, trocadilho com um conto de Machado de Assis (“Um Homem Célebre”). Para ela, o resultado do julgamento poderia ter sido diferente se o caso não estivesse nos holofotes, já que o júri entrou no tribunal com uma opinião pré-concebida a partir de tudo que viu nos noticiários.
Scarpin também afirma que o dinheiro, embora seja importante, é só um dos elementos que fez o crime ilustre. O esquartejamento, o passado como garota de programa, os vídeos do detetive, o gosto por arma e caça e a cobra de estimação são detalhes que viram entretenimento para a audiência.
“A mídia acaba bombando e quem sou eu pra criticar, porque eu também gosto de acompanhar esse tipo de cobertura”, diz.
Ela lembra que, no dia do julgamento, uma colega repórter disse que precisavam achar outro crime para fazer cobertura, pois este era o último famoso. Na lista de “criminosas célebres”, Elize Matsunaga se junta a Suzane Von Richthofen e Ana Carolina Jatobá.
“Isso me deu muito uma noção desse poder que a imprensa tem de fazer um crime ficar famoso”, afirma.
Sobre o documentário, Scarpin acredita ser um trabalho sério. Os quatro capítulos da série estão disponíveis na Netflix e o trailer pode ser conferido pelo link https://www.youtube.com/watch?v=g-E-ZSEFk_s.
Onde Disponível na Netflix
Direção Eliza Capai