Repórter que sobreviveu a tiroteio dá dicas para entrevistar vítimas de trauma

A repórter Selene San Felice já tinha coberto dois tiroteios quando sobreviveu a um massacre na redação do jornal “The Capital Gazette”, de Annapolis (a 50 km de Washington), onde trabalhava. Em junho de 2018, um atirador invadiu o local, matou cinco colegas e feriu outros dois.

Catapultada para o centro das atenções da noite para o dia, San Felice passou boa parte do ano seguinte ao atentado repetindo a história do pior dia de sua vida para outros repórteres de jornais, rádios e emissoras de televisão —e sendo assediada, chantageada e forçada a reviver lembranças dolorosas e a corrigir depoimentos seus que foram distorcidos.

Com base na experiência, ela publicou na quinta-feira (19) um artigo no site Poynter com dicas para jornalistas que pretendem entrevistar pessoas traumatizadas, especialmente no caso de sobreviventes de ataques, que o blog resume abaixo.

Bata na porta da fonte somente em último caso
San Felice relata que ouvir a campainha de casa nos dias seguintes ao tiroteio a colocava imediatamente em um estado de pânico, motivado pela possibilidade de que o atirador poderia tê-la encontrado para “terminar o trabalho”. “Se possível, esgote as possibilidades de entrar em contato com um personagem traumatizado por internet ou telefone antes de aparecer na porta dele”, escreve. “Tente pedir antes a um vizinho para colocá-los em contato.”

Não assedie ou chantageie a fonte
A jornalista recebeu cestas de flores e café da manhã de produtores de programas matinais, o que considerou um gesto de mau gosto —afinal, fica difícil discernir se é uma tentativa de troca de favores ou um presente genuíno. “Uma repórter tentou se aproximar de mim mandando mensagens de texto a todo instante”, conta. “O arranjo de flores que ela me enviou foi a última gota.”

Faça a lição de casa
No caso de um atentado, é fundamental acompanhar toda a cobertura feita previamente sobre o incidente. Ao se informar dos detalhes com antecedência, o repórter evita perguntas que possam fazer com que o sobrevivente reviva momentos traumáticos (os quais ele provavelmente já teve de repetir mais de uma vez).

Não invente detalhes
Uma repórter tentou reconstruir visualmente a cena do crime a partir de um depoimento de San Felice. O resultado final incluía detalhes teatrais e inverídicos, como uma poça de sangue no chão e uma tremedeira nas mãos da jornalista enquanto ela mandava mensagens para os pais no celular.

É errado carregar os fatos com emoções ou propósitos. “Se você achar que alguém agiu com coragem, tudo bem perguntar, ‘Você se sentiu corajoso [ao fazer tal coisa]?’. A resposta provavelmente vai te dizer mais do que qualquer tentativa de reencenação.”

Não limite o personagem ao trauma
Se a fonte começar a descrever o episódio traumático, é dever do repórter saber quando é hora de interromper e fazer com que a entrevista não acabe ali, na pior parte. Mesmo que não vá usar isso na matéria, saiba tirá-lo de lá gradualmente, com perguntas sobre a vida da pessoa para além do trauma. Pergunte do que a pessoa gosta, do seu cotidiano, do que a faz feliz. Isso faz com que ela fique confortável para sair das próprias lembranças na hora que quiser.

Pense duas vezes antes de divulgar imagens de terroristas
“Quando estou tentando levar meu dia e o rosto do homem que matou meus colegas e quase me matou aparece na TV, é como se jogassem um balde de água fria na minha cabeça”, descreve Selene San Felice.

Em vez de publicar imagens de terroristas na busca por cliques, defende, os veículos deveriam mostrar as histórias que mais importam: as das vítimas e sobreviventes. No caso do atentado ao Capital Gazette, por exemplo, seria possível usar fotos da redação, de cada memorial e vigília e do trabalho de reportagem que os jornalistas sobreviventes fizeram de uma garagem vizinha (a edição do Gazette saiu no dia seguinte, com a cobertura completa do incidente).

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