Jornalista diz ter migrado de ‘Guerra e Paz’ para o Twitter
“Percebi há um tempo atrás que não consigo ler nada do mesmo jeito que lia quando era a criança”. A confissão vem, surpreendentemente, de Michael Harris, 70, jornalista investigativo premiado pelo Centre for Investigative Journalism (Centro de Jornalismo Investigativo). Autor de nove livros de não-ficção nos quais abordou temas como prisões, justiça criminal e problemas ambientais, Harris deu a declaração ao podcast do Mozilla IRL –sigla para “In Real Life” (Na Vida Real).
A entrevistadora Manoush Zomorodi, que estuda as mudanças provocadas pela tecnologia, afirma que a internet está mudando a leitura.
“Passo muito tempo navegando no Twitter e no Instagram e aí, quando pego um livro pra ler, ele não está brilhando para mim e chamando minha atenção. Não consigo mais”, declarou Harris. A entrevistadora acrescentou sua própria experiência, dizendo que, quando tenta abrir um livro na cama, seus olhos “dançam em volta da página como se estivessem lendo o Twitter”.
Integrante de geração acostumada a ler em papel, Harris disse que a mudança de hábito foi uma surpresa.
“Eu achava que estava ‘seguro’ porque havia lido [livro do russo Liev Tolstói, 1.536 páginas na versão da Companhia das Letras], mas alguns anos de navegação intensa na internet me tornaram um ‘leitor de manchetes’.” A expressão é usada para definir gente que lê apenas o título da notícia e já a publica em suas redes sociais, sem se inteirar do conteúdo.
Outra questão é o medo constante de deixar passar algo importante. “Sentimos como se não conseguíssemos acompanhar, e não sabemos quais conteúdos devemos ler e quais podemos deixar passar. Há muita, muita coisa, e nós acabamos atraídos por resumos ou só por manchetes.”
O hábito de “passar o olho” estimula a estratégia conhecida como “clickbait” ou caça-cliques: títulos pensados para fazer o navegante clicar, mas cujo conteúdo não entrega o que havia sido prometido pela manchete.
De acordo com o “Manual de Redação da Folha”, os jornalistas devem evitar “truques para caçar cliques, como formulações sensacionalistas ou omissões destinadas a iludir o leitor”. O documento orienta que a formulação dos títulos seja atraente e responsável, com um enunciado que conquiste a atenção do leitor e que revele o objeto da notícia de forma clara.
“Um bom título tende a funcionar em qualquer meio (…). Nas plataformas digitais, a palavra-chave do conteúdo deve ser destacada no início de qualquer título”, diz o “Manual”. Como o online não tem a mesma limitação de espaço do papel, ele recomenda que “os títulos dos textos de opinião nas plataformas digitais sejam diferentes dos da versão impressa”, desaconselhando formulações prolixas.