Em um Estado no qual um feto tem os mesmos direitos que uma pessoa completamente formada, o que aconteceria a uma mulher que escolhe fumar ou beber durante a gravidez? Ou então que decida andar de montanha-russa ou empreender uma missão humanitária em uma zona de guerra? Provavelmente, ela seria condenada arriscar a vida de um nascituro.
A resposta a essas perguntas faz parte da série de editoriais intitulada “A woman’s rights” (“Os direitos de uma mulher”, em tradução livre), publicada pelo New York Times, no final de dezembro. Dividido em oito partes, o especial faz críticas severas a movimentos ativistas antiaborto e alerta para uma possível revisão do caso Roe v. Wade —célebre por liberar a interrupção da gravidez, em 1973, nos Estados Unidos— por uma Suprema Corte que adquiriu maioria conservadora após a eleição de Donald Trump.
“E se, como muitos opositores do aborto esperam, o tribunal decidir que o feto tem direitos de ‘uma pessoa’ sob a Constituição? Uma mulher grávida deixaria de existir como uma pessoa autônoma. Seu ventre se tornaria um campo de batalha legal”, afirma o jornal.
No país, ao menos 38 estados e o governo federal já possuem as chamadas leis de homicídio fetal, que tratam o feto, separadamente da gestante, como potencial vítima de crime.
Os editoriais citam desde casos raros nos quais mulheres foram criminalizadas por caírem de escadas ou por se envolverem em brigas com seus parceiros que resultaram na morte do feto a relatos de entrevistadas que deram à luz a natimortos e foram sentenciadas por isso.
A publicação ainda responsabiliza a abordagem da imprensa pela popularização da ideia de direitos fetais. Cita como exemplo o pânico moral que teria sido criado envolvendo mães dependentes químicas durante a epidemia de crack do final dos anos 80 e início dos anos 90, bem como a repercussão daqueles que ficaram conhecidos como “bebês do crack”. “Quando a epidemia terminou, a visão de que o feto era uma pessoa com direitos que substituíam os da mãe havia ganhado considerável força na prática. Os promotores aproveitaram o mito para expandir a guerra contra as drogas para o útero, acusando mulheres grávidas de crimes graves”, diz.
A crítica se estende à cobertura do próprio Times, que reconhece ter instado autoridades a suspender os direitos parentais de mulheres dependentes de crack. “A ideia de um ‘bebê do crack’ mentalmente debilitado ressoou visões racistas de longa data sobre os negros americanos. Ela capturou a imaginação de repórteres, políticos, funcionários de escolas e outros que eram historicamente condicionados a acreditar em qualquer coisa sobre os pobres afro-americanos.”
A publicação chama a atenção para a cobertura de estudos científicos e de questões sociais atuais envolvendo a maternidade, como o consumo de opioides, maconha, cafeína e paracetamol (Tylenol) durante a gestação. “A ciência em torno da gravidez precisa ser abordada com humildade e humanidade. Porque quando isso é perdido, mesmo em uma busca pelo bem social, os resultados podem ser irreversíveis.”