Jornalismo precisa se adaptar logo a futuro de reconhecimento de voz e imagem, diz especialista
RODRIGO VIZEU
DE WASHINGTON
O mundo contempla com doses de tensão ferramentas como inteligência artificial, reconhecimento facial, de voz e de movimentos se tornarem progressivamente cotidianas e colocarem em questão boa parte dos setores da economia.
Um deles é o jornalismo, que já vive há anos em crise e tem muito mais pela frente com o que se preocupar.
O diagnóstico é de Amy Webb, especialista em futurismo e fundadora do Future Institute Today, que presta consultoria para endinheirados e grandes empresas e faz previsões de quais tendências estão por vir.
Webb foi uma das palestrantes do encontro anual da ONA (Online News Association), que reúne quem trabalha e estuda jornalismo digital nos Estados Unidos –a entidade tem também diversos braços pelo mundo.
A reunião de 2017 ocorreu no início do mês passado, em Washington. A futurista quantitativa, como se define, dividiu suas previsões em três cenários: otimista, pragmático e catastrófico.
No otimista, as empresas de comunicação percebem desde cedo que a tecnologia caminha para a chamada “zero-UI” (zero user interface, em inglês), que pode ser resumida grosso modo como o fim das telas.
Com o avanço acelerado do reconhecimento de voz e imagem, mesmo os smartphones – à qual boa parte da imprensa ainda pena para se adaptar – virarão história.
O futuro caminharia para algo mais próximo da Alexa, tecnologia de reconhecimento de voz da Amazon já bem comum nos lares americanos, na qual o usuário apenas dá ordens a dispositivos espalhados pela sua casa, pedindo informações sobre a previsão do tempo, receitas de macarrão e, veja só, notícias.
Com diferentes graus de gravidade, as previsões pragmática e catastrófica não diferem tanto nesse ponto: na primeira, as empresas ensaiam adaptações para o “zero-UI”, mas sem uma estratégia aprofundada para a voz, perdem receita rapidamente e poucos sobrevivem; na segunda, ninguém se prepara para nada e o resultado é falência e desemprego em massa no jornalismo.
Ela lembra ainda que num império da busca de notícia por voz, pode importar menos ainda a fonte da informação, expandindo-se assim o flanco das notícias falsas.
Fake news
O combate às “fake news” foi tema de mais cenários da especialista, além de parcerias entre o jornalismo e os gigantes da distribuição do conteúdo, como Google e Facebook, e o uso de tecnologias para reforçar preconceitos e estereótipos (exemplo recente disso é o software que reconheceria rostos de homossexuais).
Nesses, os cenários pragmáticos e catastróficos vão de erosão da confiança no jornalismo e desdém das gigantes da tecnologia a confusão, violência, revoltas populares e até guerra nuclear.
Em sua apresentação, Webb diz que, do jeito que as coisas estão, os cenários otimistas são altamente improváveis, e tendemos mesmo aos horizontes mais negativos.
Contra isso, ela cobra como naco de responsabilidade da imprensa ser pioneira em se adaptar às novidades que se impõem – as empresas queiram ou não.
O relatório de Webb está aqui.
Na plateia, a fala da palestrante foi recebida entre assombro e ironia dos que lembraram que futuristas costumam acertar 50% das vezes, mas errar na outra metade.
Jornalismo sob Trump
Outro ponto alto do encontro da ONA 17 foi a mesa de abertura, que discutiu temas quentes nos EUA, como Donald Trump, racismo e confiança na imprensa.
Moderado por Brian Stelter, da CNN, contou com a participação de jornalistas como Nikole Hannah-Jones, do “New York Times”, e Elle Reeve, da Vice, famosa por reportagem (aqui, com legendas em português) sobre a violência em Charlottesville.
Os jornalistas questionaram o fato de a imprensa americana analisar excessivamente os fatos sob o prisma do trumpismo, como se este fosse o único fato sócio-político do país, e dar atenção à extrema-direita além da representatividade que esses radicais têm na sociedade.
Também na mesa, Cenk Uygur, do canal de esquerda The Young Turks, criticou a grande imprensa americana, que para ele se vende como isenta e acima do bem e do mal, mas tem um lado: o establishment político e econômico dos EUA.
O Nieman Lab, de Harvard, publicou um bom resumo (em inglês), com os destaques da ONA.
Quem quiser mergulhar mesmo nas discussões tem ainda um link oficial com registros em vídeo, áudio e live blogging de muitas das mesas de debate. Vale a pena!