“O rio que eu amo era coalhado de corpos”

treinamento

AX033_3FA0_9

Etel Frota

Se o Festival Piauí focou os vespeiros onde o jornalista põe a mão, nenhuma outra hipótese de ferroada  –Kremlin, Fifa, igreja- se compara em peçonha e letalidade aos riscos assumidos pela colombiana Ginna Morelo, 43, na linha de fogo entre as Farc e os grupos paramilitares, conflito que já produziu 226 mil mortos. Ela parte de memórias remotas. “O rio da minha infância, o rio que eu amo, era coalhado de corpos.”

Sua Colômbia vive neste momento uma situação surreal. Na semana passada, enquanto o presidente Juan Manuel Santos era anunciado vencedor do prêmio Nobel da Paz pelo acordo selado com as Farc, o povo colombiano rejeitava esse mesmo acordo, em um plebiscito cuja representatividade foi posta em xeque por uma abstenção de 63%. Segundo a jornalista, a paz será um longo e acidentado processo; o resultado da consulta é um retrocesso nessa construção.

A campanha do “não”, liderada pelo ex-presidente Álvaro Uribe (2002-2010) fez, em sua opinião, farto uso de inverdades e insistiu em reabrir feridas, como as do atentado de 2003 ao Clube El Nogal (em português, A Noz). Atribuída às Farc, a explosão de um carro-bomba deixou 36 mortos e 200 feridos, no coração de Bogotá.

O acordo celebrado em agosto deste ano, mediado por Cuba e Noruega, previa a desmobilização dos guerrilheiros com a entrega das armas e a transformação das Farc em um movimento político. Os partidários do “não” se opõem à anistia. O desafio, agora, é enfrentar a frustração e o desânimo que se abateram sobre quem trabalhou na construção desse pacto nos últimos quatro anos.

“O desmonte paramilitar que Uribe anunciou em 2006 apenas mudou o nome das coisas. O cenário continua truculento e sujo. Há, no país, um aparelho de morte.”

Aparência frágil, houve momentos em que Ginna se emocionou. Falou de cursos de esquartejamento de cadáveres; relatou a visita que fez à casa de uma mulher que recolhera de uma cova clandestina e guardava em um saco, sobre o forro da sala, os ossos de seu filho; do número de jornalistas mortos; do assassinato em série de professores de ciências sociais.

Calou-se por instantes, ao relatar um assassinato em particular, acontecido em 2013. A jornalista havia sido premiada pela reportagem sobre um homem que conseguira resgatar e enterrar no mesmo cemitério os corpos de 11 pessoas de sua família, assassinados ao longo de anos. Preparavam-se ambos -ela e a fonte- para receber o prêmio, quando ele foi morto.

Ginna abandonou a profissão por meses. Voltou para trabalhar com jornalismo de dados no “El Tiempo”, mas ressalva: “Nenhuma tecnologia substitui a presença: andar com as pessoas e escutá-las”

Festival Piauí Globonews de Jornalismo: Mesa “Histórias do Poder. Quando o repórter põe a mão no vespeiro”. GINNA MORELO, El Tiempo (Colômbia). Mediação: Paula Scarpin (Piauí) e Verônica Goyzueta (ABC Espanha)

 

Etel Frota, 64, paranaense, é médica com especialidade em saúde pública e reumatologia. Aposentada, virou produtora cultural, letrista de MPB e radialista. Apresenta um programa semanal sobre poesia, prosa e música na Rádio Educativa do Paraná.

Comentários

  1. Ótimo texto. Me fez sentir a emoção da repórter colombiana narrando suas experiências e também imaginar o cenário de ontem e hoje no país sulamericano. Gostei muito!

  2. Ethel, parabéns! Como sempre: brilhante, sensivel e precisa. Linda estreia. Bjs. Gilda Poli, sua admiradora, desde sempre.

Comments are closed.