Na cobertura de David Bowie, a mídia esqueceu um aspecto fundamental
Morto aos 69 em decorrência de um câncer, o músico David Bowie ficou famoso por suas letras misteriosas e por sua imagem ambígua. Um dos aspectos que mais marcou sua vida pública, entretanto, foi a sua abertura ao falar sobre sexo em uma época em que isso não era tão comum. Leia, abaixo, a análise do crítico cultural Bill Wyman para a “Columbia Journalism Review” sobre como diversas publicações passaram batidas em relação à sua sexualidade.
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Um aspecto da vida de David Bowie foi omitido em muitas das homenagens. É possível ler o obituário de Jon Pareles no “New York Times” na segunda-feira 11 de manhã e não ficar sabendo que Bowie foi a primeira estrela de rock a admitir que era gay. Depois de ler Elyssa Gardner no “USA Today”, também não se descobre isso. O obituário da CNN também não falou sobre o assunto, assim como não o fez o “Wall Street Journal”. Mesmo publicações mais da moda como a “Slate” ignoraram esse elemento da vida de Bowie em seus obituários.
O que está acontecendo?
Bowie já era casado e era um músico conhecido quando declarou pela primeira vez a sua sexualidade a um jornalista de música britânico: “Sou gay e sempre fui, mesmo quando fui David Jones” (seu nome de registro). Mais tarde, afirmou que era bissexual. Sempre falou com franqueza, até com desdém, sobre sexo, de uma maneira única naquela época.
Uma reportagem da CNN, por exemplo, se esforçou ao máximo para mencionar o papel de Bowie em uma “briga motivada por uma menina na escola”. A versão do próprio Bowie sobre essa época de sua vida era muito diferente. Contou à “Playboy”: “Se havia algum menino bonito na escola, eu levava para casa e fodia cuidadosamente na minha cama”.
À medida que envelhecia, esse tipo de declaração se tornou cada vez mais raro. Na década dos 80, definiu-se à “Rolling Stone” como “um heterossexual no armário” e, como todos os obituários perceberam, ele estava casado, havia 20 anos, com a sua segunda esposa, a modelo Iman.
A transparência de Bowie e a sua forma de transpor os limites de gênero ao se vestir foram uma parte sumamente importante da evolução da música e da sociedade. Isso parece ser importante o suficiente para ser mencionado nos obituários.
É bom lembrar que ser gay era ilegal no Reino Unido. A s leis a respeito da homossexualidade, que era punida com morte nos idos de 1800, passaram a ser flexibilizadas nos anos 1960. Quando Bowie se assumiu publicamente, alguns aspectos ainda eram proibidos, e só foram totalmente descriminalizados por volta do ano 2000.
O rock, apesar de desprezo pelas normas sociais, nunca foi especialmente aberto sobre a homossexualidade. Com exceção do pioneiro dos anos 50 Little Richard, cuja sexualidade seria melhor descrita como “sem limites”, Bowie parece ser o primeiro músico importante a falar em público com tanta franqueza.
Alguns anos mais tarde, Elton John se declarou bissexual em uma entrevista à “Rolling Stone”, mas, deixando de lado algumas artistas do gênero disco, o ato de assumir-se ainda não era visto como um bom passo na carreira. O cantor de um dos grupos mais importantes dos anos 70 e 80, o Queen, ficou no armário. Freddie Mercury morreu de aids em 1991, mas sua orientação sexual não foi mencionada no obituário do “NYT”. Um concerto de comemoração, que aconteceu no ano seguinte, contando com um elenco impressionante de estrelas, teve sua bilheteria destinada a pesquisas sobre a aids, mas a doença, e muito menos a orientação sexual de Mercury, quase não foram mencionadas.
Houve, claro, roqueiros gays ao longo da história —muitos dizem que Janis Joplin era bissexual—, mas isso não era algo assumido. Nas últimas décadas, algumas poucas estrelas, em particular Pete Townsend, do The Who, e o guitarrista Dave Davies, do Kinks, se disseram bissexuais.
A cobertura da morte de David Bowie é um desses casos no qual a ignorância e alguns vieses fizeram com que fosse omitida uma parte histórica de uma vida celebrada.