O outro lado da Aids

rbotelho

Por Júlia Marques, trainee de ciência e saúde

Uma foto em preto e branco anuncia a inauguração de um trecho da rodovia Transamazônica pelo presidente Garrastazu Médici. Na parte superior esquerda, a notícia de um possível armistício no Vietnã. Em letras menores, os resultados do futebol –com vitória do Cruzeiro!– e, no outro canto de cima, as medidas para controlar o surto de meningite que atingia o país. Essa foi a capa da Folha de S.Paulo no dia 28 de setembro de 1972, uma quinta-feira.

O médico infectologista Caio Rosenthal lembra bem dessa época. Formado na década de 70, começou a trabalhar no Hospital Emílio Ribas, que recebia a maioria dos casos de meningite de São Paulo. De junho de 1971 a setembro de 1972, mais de 1.600 pessoas foram internadas no hospital com a doença. “A epidemia impressionou o mundo inteiro”, recorda. Os médicos recém-formados, como ele, caíram de paraquedas em uma realidade que o governo militar tentava abafar de todo jeito. Outros desafios estavam por vir.

Do meningococo ao HIV

Com um roteiro anotado a mão, no verso de folhas de rascunho, Caio Rosenthal inicia a conversa com a primeira turma do Treinamento em Jornalismo de Ciência e Saúde da Folha. A história de outra doença, que aparecia aos poucos naquela mesma década, se confunde um pouco com sua própria trajetória profissional.

“Jovens chegavam aos hospitais e sucumbiam por desnutrição. Os médicos não sabiam diagnosticar”. O processo foi longo até a descoberta do vírus da Aids, em 1983. O surto da doença corresponde ao surto de reportagens que começaram a tratar do assunto no jornal. Na edição de 3 de junho de 1987, uma página inteira da Folha foi dedicada à Aids. No pé, um artigo de Caio Rosenthal sobre a discriminação que os pacientes sofriam por parte da sociedade e dos médicos, em particular.

“A Aids veio abalar valores culturais. Não é apenas a opção pelo homossexualismo, mas também o conceito de fidelidade ou infidelidade que está agora em questão”, dizia o texto. Mais de 20 anos depois, o médico infectologista faz uma retrospectiva para dizer de que modo o vírus mudou paradigmas. “O HIV foi quebrando tabus como nenhuma outra doença”, conta.

Os médicos precisaram compreender a importância do trabalho coletivo –com enfermeiros, psicólogos, sociólogos. “Nenhum tratamento de HIV funciona sem uma equipe multifuncional”, afirma. No campo da medicina, a doença trouxe outros avanços. Na tentativa de melhorar o diagnóstico da Aids, os cientistas desenvolveram um método de identificação precisa do vírus, que pode ser aplicado hoje também para detectar hepatite. Antes disso, só era possível detectar um vírus por meio dos anticorpos que ele criava no organismo.

Em 1996, o Brasil passou a oferecer gratuitamente os medicamentos contra a doença –uma bandeira de ativistas que se mobilizaram pelo tratamento da Aids. De acordo com o Ministério da Saúde, cerca de 600 mil pessoas têm o HIV no país e 350 mil já morreram em decorrência da doença no Brasil. Curiosamente, a taxa cresce agora entre as jovens de 16 a 24 anos e uma das explicações ainda é a dificuldade de garantir que o parceiro use camisinha.

Para reduzir o avanço da doença e permitir o tratamento precoce, a tarefa é conseguir que o maior número de pessoas no Brasil faça o teste de HIV e descubra se tem o vírus. A campanha do governo federal Fique Sabendo incentiva o exame. Incansável, Rosenthal defende: “Esse movimento tem que pegar”.

 

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