Ética e Virada Cultural

Paula Leite

Os trainees ajudaram a cobrir no último final de semana a Virada Cultural, no centro de São Paulo. A trainee Clara Roman contou como foi a sua experiência com uma pauta inesperada que surgiu na madrugada e que levou a um dilema ético.

No sábado à noite, eu e os outros trainees fomos auxiliar a equipe da Ilustrada e do jornal na cobertura da Virada Cultural. Cada dupla era responsável por uma região do centro da cidade. A ideia era fazer uma cobertura de serviços, identificar problemas e mandar comentários para a cobertura minuto a minuto do evento (liveblog).

Em certo ponto, estávamos conversando com um enfermeiro do posto de emergência da nossa região quando ele nos falou que uma adolescente de 17 anos havia morrido de overdose. A médica que havia atendido a menina estava no local e nos deu mais informações, sem se identificar. Depois, comentou que na Santa Casa e Misericórdia o movimento de pessoas da Virada era grande. O plantonista da Ilustrada que estava na redação pediu para irmos até lá.

Ao chegar, não foi difícil constatar o caos. A cada cinco minutos chegava uma ambulância. Dois casos eram os mais comuns: coma alcoólico e pessoas feridas em brigas. Quem estava esperando amigos ou parentes conversou conosco abertamente. Já conseguir declarações oficiais ou de funcionários do hospital foi bem mais complicado. Enquanto isso, boatos começavam a circular: um policial federal havia entrado no local baleado e mais duas pessoas tinham morrido. Ninguém confirmava. A assistência social se negava a falar.

Até que uma enfermeira me puxou de canto e falou para algum de nós entrar com ela e filmar a situação lá dentro do atendimento, onde era proibida a entrada. Com o celular, para chamar menos a atenção. O celular do Fernando (minha dupla) filmava. Mas nenhum de nós sabia mexer muito bem no aparelho. A enfermeira apressou e eu entrei na área restrita sem saber direito o que fazer.

Depois da porta, a situação era ainda mais tensa do que na sala de espera. Uma adolescente sem blusa estava jogada em uma maca, mais uma entre tantas que abarrotavam o corredor. Pessoas feridas, às vezes sentadas no chão, se intercalavam com quem estava desacordado – e sem nenhum atendimento – por causa da bebedeira. Foi quando percebi que não conseguia fazer o celular funcionar. Apertei todos os botões possíveis e nada. Seguranças me notaram. Dei mais uma volta, tentei acionar o celular. Não consegui. A enfermeira pediu para eu sair, que se ficasse mais a situação se complicava para ela. Saí. Sem nenhuma imagem.

De volta a sala de espera, tive a sensação que perdera o grande furo da minha vida. Mas isso demorou dez segundos, até eu ver que, na porta de entrada, havia uma placa proibindo entrar com câmeras e filmar/fotografar o local. Seria certo fazer imagens de pessoas que estão completamente expostas e não podem se esquivar? Pensei que não. As imagens seriam fortes, mas valeria a pena expor os pacientes? Claro, tomaria o cuidado de não filmar rostos. Mesmo assim, estaria infringindo a regra do hospital.

Acho que teria sido melhor se eu tivesse as imagens e depois fizesse a reflexão. Mas pensar que eu fiz a coisa mais ética, mesmo sem querer, me serviu de consolo. A enfermeira que nos ajudou depois veio dar um conselho: ‘Vocês tem que ter aquelas câmeras escondidas, põe na lapela e sai filmando’. Será? No fim, fizemos uma matéria sobre o que vimos e ouvimos.

Gostaria de saber a opinião dos leitores do blog: vocês usariam as imagens? Por que sim ou não?

Comentários

  1. Provavelmente eu não usaria as imagens pq pra mim elas não mostram algo errado. Considero aceitável devido a dimensão deste evento (imagino que seria o mesmo se houvesse uma grande enchente ou epidemia).

    A culpa não é da Santa Casa, pois ela tem um limite para atender. Só que também não pode recusar paciente.

    Em casos de grande número de pessoas é obvio que os menos graves serão atendidos depois – principalmente se for um caso de alguém “desacordado por causa da bebedeira” que praticamente procurou por isso.

    Agora se fosse assim todos os dias, faltasse remédios básico, ou tivesse uma barata na sala de cirurgia… aí é outra história

  2. É realmente muito interessante que um jornalista da Folha entre em uma discussão sobre a ética. Como dito no inicio do texto, os trainees receberam a orientação de “identificar problemas” e não de fazer uma simples e pura cobertura jornalística imparcial, como deveria ser. A falta de imparcialidade numa imprensa livre, pra mim, já bastaria como a maior agressão a todos os princípios éticos. Filmar ou não em um local proibido é o que menos importa.

  3. Acho que a Clara poderia ter feito o vídeo. Ter o material na manga é sempre bom, ainda mais nesse caso. Ao chegar no jornal explicar para o editor o acontecido e afins. Seria meio que jogar a bomba nas mãos dele. Se o jornal decidir assumir a bronca, blz. Caso contrário, você fica com a “certeza” de que não perdeu nada.

  4. Criticar a Prefeitura que é bom, nicas. Falem mal da Virada, mas não a associem com o prefeito Kassab, um homem íntegro. Falar mal da rede hiospitalar estadual, da piolícia civil e da PM do estado, que ganham mal e trabam mal, num estado que está nas mãos do mesmo grupo político, nada. Afinal, vai que a Folha perde os anúncios municipais e estatais, não é?

    1. Querido Bruno, vc estava tão sumido, que saudades das suas críticas de quem não lê o jornal! 😀

  5. Acho que a Clara fez a coisa certa. Não é justo expor as pessoas que já se encontram em situação de desamparo se há outra forma de conseguir a matéria. Ela conversou com as pessoas, observou o ambiente e, com isso, já conseguiu uma boa reportagem. Câmera escondida só deve ser usada se não houver outro meio de produzir a matéria. Como ela está escrevendo para um meio impresso e de internet o vídeo não vai fazer tanta falta.

  6. O interesse público nesse caso é muito maior do que qualquer outra questão. Seria muito anti-ético não mostrar o outro lado da Virada Cultural. Interessa a todo mundo.

    Acho que você perdeu uma excelente matéria por um bobeira muito grande: não saber gravar vídeos no celular.

    Parece besteira, mas não é. Ligar um celular e gravar um vídeo é algo extremamente simples, mesmo para quem não tem muita intimidade com os aparelhos. Para quem é jovem e está começando agora, piorou.

    1. Mas ninguém nasce sabendo, nem os jovens 😉 Agora que ela percebeu a utilidade que um celular pode ter numa hora dessas, certamente já se esforçou para aprender como usá-lo rapidamente numa próxima ocasião.

  7. Filmar o interior do hospital – ainda mais público -, não seria antiético.

    Antiético seria mostrar as pessoas que estavam sendo atendidas (ou esperando por atendimento) sem o consentimento delas.

    Imagine, por exemplo, você divulgar as imagens e lá aparecer alguém que, hã, “omitiu em casa” que iria para algum evento da virada, ou algo assim. Deliberadamente você estaria interferindo na vida privada da pessoa. Mesmo o recurso de omitir rostos por intermédio de edição não é seguro (tatuagens ou roupas podem servir para identificação por conhecidos)

  8. Bem, se você tivesse feito a matéria, poderia ajudar a impedir que as pessoas sejam “atendidas” dessa maneira no futuro. O governo, em geral, tem muitas regras. A maioria se deve a uma cultura de esconder as coisas para que erros não apareçam, sobretudo para a imprensa. Acho que nosso papel é sempre tentar abrir as informações públicas. E não há nada de antiético nisso.

  9. Ética jornalística e/ou furo de reportagem
    Este é o debate que ñ se cala, varia de local e de situação, mas ñ se chega a um consenso nunca.
    Mostrar a verdade é suscitar o debate e a objetivar a, ou as soluções ao, ou aos problemas é obrigação do jornalista.
    Ser exposto ao vexame ou chacota ou coisa do tipo para fins de furos jornalísticos é permissível?
    No caso q se apresenta talvez as imagens pudesse ser guardada para caso alguém negasse a existência do fato. Deixar de noticiar os acontecimentos, isso nunca.
    Jornalista nunca dorme o sono dos justos, apenas repousa no travesseiro da luta ética de suas obrigações.

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