Minha vida pessoal pode atrapalhar numa seleção?

Ana Estela de Sousa Pinto

Uma nossa leitora pergunta:

Faço estágio, mas consegui ir para uma entrevista num veículo em que sempre quis trabalhar, desde antes de fazer faculdade.

Lá, a entrevistadora perguntou que outro lugar do Brasil eu queria conhecer. Respondi: “A cidade em que nasci”. Ela quis saber se meus pais nunca haviam voltado para lá, e contei que eles nunca foram lá, porque sou filha adotiva.

 Aí a entrevista girou praticamente só em torno disso.

Ela perguntou se eu não sentia falta dos meus pais (querendo dizer os biológicos). Disse que não, já que eu morava com eles (os adotivos). Aí ela reclamou que eu não havia respondido a pergunta. Ué, o que eu ia responder?

Ela continuou no assunto e, numa resposta, mencionei “a senhora que me colocou no mundo”. Foi uma avalanche de perguntas: Por que você não a chama de mãe? Você a conhece? É revoltada? Isso te prejudica?

Respondi não a tudo. Quando afirmei que não queria procurar essa senhora, ela ficou questionando meus motivos e insistindo que todo humano quer saber de onde veio. E ainda perguntou se minha mãe me tratava bem e se eu a tratava bem.

Não passei na entrevista.

Era meu sonho e ainda não entendi se a selecionadora era doida, se eu sou burra e não sei responder ou se os dois.

Por que um selecionador insiste em perguntas sobre a vida pessoal do candidato? Que sentido tem interrogá-lo sobre assuntos íntimos?

Pode ser, sim, que a entrevistadora fosse doida. Mas muitas vezes as perguntas mais agressivas ou embaraçosas têm o objetivo de testar a maturidade do candidato.

Pessoalmente, acho essa técnica inadequada e improdutiva, além de indelicada.

Maturidade é certamente uma característica muito importante, mas não é preciso intimidar nem constranger os outros para medi-la.

Por mais chato, porém, que seja não ter realizado seu grande sonho desta vez, não desanime nem desista.

Nas próximas seleções, fique tranquila e pense que seu foco principal é profissional. A pessoa que está à sua frente não tem nenhum direito de discutir sua vida pessoal. Nem você tem obrigação de contar tudo em detalhes. Responda com tranquilidade e firmeza e, quando for o caso, saia pela tangente.

Que cidade você quer conhecer? Diga Moscou, Kyoto, Istambul.

Você gosta dos seus pais? Dê a resposta mais clichê do mundo: Claro! Não quer dizer que a gente não tenha opiniões diferentes muitas vezes, mas eu os respeito e os amo.

Em quem você votou para presidente? Eu fiz uma promessa para mim mesma de nunca revelar esse tipo de coisa, pois acho que os jornalistas devem procurar ser equilibrados e imparciais

E por aí vai…

Sabe o que é mais curioso nisso? Há uns dois anos atrás uma leitora me escreveu com um problema exatamente oposto ao seu. A entrevistadora implicou com ela porque ela queria muito descobrir quem era sua mãe biológica.

Haja intromissão, né?

Comentários

  1. Sobre o primeiro relato: a mulher era doida mesmo.
    Ana, concordo que religião seja algo muito pessoal e que não deve interferir no trabalho de jornalista.

    Mas muitas empresas tem a pergunta “a que grupo religioso pertence” por interesse trabalhista. Por exemplo, os Testemunhas de Jeová não trabalham na sexta de noite e no sábado até às 18h.
    Já deixei de ser contratado porque o chefe era Espírita e respondi ser católico.

    Não são casos tão comuns, mas eu já fui “preferido” para um cargo por ser homem e não ter o “problema” de engravidar e ter que ficar algum tempo fora, entende?

    Voltando ao assunto, acho mais desrespeitoso ainda perguntar sobre doenças pré-existentes e se são contagiosas do que perguntar a religião do candidato.

    1. João, sim, eu acredito, embora seja muito irritante. Na verdade o que eu queria dizer sobre a religião é que não é preciso ficar discutindo o assunto com o entrevistador se ele for só um entrevistador. Por exemplo, nos formulários da Folha até tem o campo religião. Mas preenche quem quer e essa informação não é relevante para a seleção. Se você me perguntar a religião dos meus colegas, das pessoas da minha editoria, dos meus trainees, eu não saberei te dizer… A pergunta sobre doenças também é péssima, né? =/

  2. Queria mesmo ser mais tolerante que essas pessoas sem a menor noção. Acho que a entrevistadora estava pedindo para ouvir uma grosseria. Às vezes funciona. No meu primeiro estágio na “grande imprensa”, meio que discuti com a editora, uma jornalista super sênior e reconhecida. Ela era terrivelmente grossa, mas detestava subordinado que abaixasse a cabeça e saísse com o rabo entre as pernas. Fui contratado, depois de ter certeza que não rolaria. Brigamos outras dezenas de vezes enquanto a tive como chefe, com direito a frases super arrogantes do tipo: “Quando você estava engatinhando, eu já tinha 15 anos de jornalismo.” O bom é que só ela podia brigar comigo. Se outro editor viesse ser cretino, ela era capaz de matar o cabra. Foi a melhor chefe que já tive, além de ter sido uma experiência muito marcante do meu começo de carreira. Antes dela, eu não era repórter. Hoje, sem a pressão da redação, nos damos super bem. 🙂
    Meu conselho é: confie no seu taco e não aceite abusos. Saber seu valor e impor respeito também é uma qualidade importante para o trabalho. Nós, jovens, sofremos por medo de não encontrar nosso lugar (no mundo, no mercado – o que for) e acabamos aceitando esses abusos. Não podemos. Defenda-se.

    1. Mauricio, concordo com você sempre que se tratar de uma questão importante, num momento importante. Acho assim: se o tema controverso é irrelevante profissionalmente, pra que perder tempo com ele? Para que alongar conversa sobre nossos pais adotivos, ou sobre se rezamos à noite, se nada disso importa pra alguém ser bom jornalista? Mas, se for relevante, aí sim devemos levantar a cabeça e não aceitar abusos. Abraço, Ana

  3. Vi esse post e fiquei pensando no que aconteceu comigo no final do ano passado. Nos últimos dias de 2011, fiz uma entrevista com dinâmica de grupo e teste escrito de post para blog para um hospital dedicado a crianças com problemas motores que procurava um jornalista blogueiro para trabalhar na área de mídias sociais de lá.
    No questionário escrito, existiam as perguntas: “a qual grupo religioso você pertence?; vc tem alguma doença pré-existente? ela é contagiosa? vc toma algum medicamento controlado? existe algum medicamento q vc precisa tomar continuamente?”
    Daí respondi que pertencer a algum grupo religioso não tinha nada a ver com o trabalho a ser exercido e que essas perguntas sobre condições médicas é querer entrar na privacidade da pessoa e que é um assunto que deve ser tratado entre médico e paciente. Caso passasse no processo seletivo e precisasse fazer algum exame médico, isso ficaria entre ele e eu. Durante a conversa com a “entrevistadora do RH” percebi que ela era uma pessoa extremamente religiosa, pois em tudo o que falava tinha Deus e alguma coisa. E ela tb resolveu pegar no meu pé por eu trabalhar como autônoma e estar ali tentando uma vaga CLT. O resultado disso foi exatamente a sensação que tive na mesma hora ao deixar a sala: não passei.
    Agora, como lidar com uma entrevista que acaba ficando na cara que vai ser tendenciosa, que a pessoa vai apenas se interessar por aqueles que seguem a mesma “cartilha” que ela???

    1. Danielle, seu depoimento é muito interessante. Acho que a primeira providência é ver se quem está te entrevistando é a mesma pessoa que vai te chefiar depois.
      Pelo que tenho lido aqui no blog, dos comentários dos leitores, parece muito comum que as entrevistas não sejam feitas pelos editores.
      E, com isso, há esse risco de a avaliação não passar pelas qualidades profissionais, ou incluir outros itens indevidos, ou sofrer a intervenção subjetiva de um entrevistador que não está focado no jornalismo.
      Você tem toda razão, religião é assunto pessoal e não tem nada a ver com seu potencial para o jornalismo.
      Mas, a não ser que seu chefe fosse exigir que você pautasse sua conduta profissional por algum princípio religioso, acho que, durante a entrevista de seleção, não há porque criar caso com esse assunto. Basta sair pela tangente. Algo como “respeito todas as religiões” ou “reconheço o bem que a religião faz para muitas pessoas”.
      Abraço,
      Ana

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